segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Fragmentos de uma vida… (II)


Era bem cedo quando ela desceu do ônibus. O ponto ficava exatamente em frente ao seu destino, mas, no lado oposto daquela movimentada avenida. O semáforo não demorou muito a ficar vermelho e liberar a faixa de pedestre na medida em que os carros, um a um, iam parando. Ao som característico, indicativo de faixa livre, ela misturou-se à multidão de trabalhadores a transpor a larga e movimentada rua.

Na fachada do prédio de três andares repousava em letras garrafais-ornamentadas, as iniciais – CTM. Um leve cumprimento ao recepcionista e ela subiu, decisivamente, as escadas.

- Bom dia, saudou uma jovem senhora de pele negra e cabelos naturalmente ondulados um pouco abaixo da altura dos ombros.
- Bom dia, respondeu ela contraindo a face num sorriso amavelmente iluminado.
- Chegou cedo hoje, observou a senhora sob nuances interrogativas.
- Verdade, o dia será minúsculo. Preciso adiantar o treino, aproveitar o maior tempo possível.

A mulher sorriu e continuou a abrir as persianas das janelas envidraçadas. A luz natural iluminou o salão espelhado. Ao se voltar, interpelou.

- Acha mesmo que vale a pena tanto esforço?
- Não, eu não acho. Rebateu sem olhar a interlocutora, enquanto vislumbrava a própria imagem nos espelhos que tomavam toda a parede defronte. Diante da expressão incrédula da jovem senhora ao lado, ela sorriu.
- Eu acredito. Tenho certeza que todo esforço é um aprendizado. Achar é a primeira lição a ser desconsiderada. O achismo é um horror.

A mulher sorriu, balançando negativamente a cabeça. – Vendo-a falar assim fica difícil não acreditar também. Conte comigo, sempre.
- Eu sei que posso contar. Vamos começar então?

Uma melodia ritmada ressoou e ela passou a andar, pra lá e pra cá, com paradas regulares e gestos estratégicos, flertando consigo mesma; repetindo à exaustão.

Horas mais tarde o interior dos prédios, aquele inclusive, já fervilhava.

- Consegue mesmo ler esse tipo de livro? Indagou a senhora d’antes, enquanto ela já se preparava para deixar o treino, tempo depois.
- Oh, sim! Respondeu.
- Não é todo dia que vemos uma menina tão jovem interessada nesse tipo de literatura. Nem as escolas ensinam mais isso. Muito menos incentivam tais leituras.
- Isso é verdade sim. Não leio pela escola, leio por mim mesma.

A mulher recuou instintivamente.

- Não, não, por favor! Não fique constrangida. Leio de fato por mim mesma, acredite. Disse ela com explícita cordialidade. As escolas ignoram a literatura, como você mesma disse. Sendo assim busco ler clássicos por conta própria. E, principalmente, por incentivo dos meus pais.

Não me constrangeu, querida, remendou a mulher, fico feliz por buscar caminhos que vão levá-la ao sucesso, sendo indiferente, o âmbito dessa vitória. Quem tem conhecimento jamais será um perdedor, essa é a grande verdade.
- Obrigada, minha amiga! Bom, preciso ir, a tarde é curta e as 17h20, em ponto, tenho que marcar presença no largo da Praça Central.
- Ainda a observar o homem-dos-pombos?
- Ele é muito simpático.
- Falou com ele, exasperou-se a mulher.
- Sim, tomei coragem e o abordei.
- Oh, meu Deus! Minha querida, isso é muito perigoso. Não o conhece.
- Ora, que mal há? O que poderia acontecer em meio a uma praça repleta de gente e pombo? Já até confidenciei à minha mãe. Trata-se apenas de um novo amigo do acaso… e meu, agora.

Ela sorriu maliciosamente, agarrou os pertences e bateu em retirada. A cidade, como sempre, estava frenética e lá se foi ela a contabilizar mais um ser naquele emaranhado de artérias pulsantes e concreto armado e escaldante.

Tratava-se de O Banquete, o livro lido àquela ocasião pela jovem visionária. De Platão.

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