As migalhas de pão eram arremessadas sucessivamente. A cada ação, os pombos, à espreita,
disputavam-nas com bravura. Era uma
tarde bem atípica, pois apesar das nuvens grossas, a chuva ainda parecia não
disposta a cair.
Naquele cenário meio bucólico, meio lânguido ele continuava, mecanicamente, a arremessar pedaços de pão às aves, indiferente a tudo, inclusive à tempestade que ameaçava. A cidade movimentava-se às pressas tanto pelo frenesi urbano de fim de expediente, como pela pressa em desfrutar o aconchego do lar e livrar-se de uma tormenta em trânsito. As artérias da cidade estava em alvoroço, mas ele continuava no aconchego da própria solidão, do marasmo íntimo que o consumia.
Um leve toque no ombro o despertou. Súbito ele ajeitou-se no banco rígido e frio a procura de quem violara sua imersão íntima e necessária.
- Atrapalho? Era uma voz de mulher.
Naquele cenário meio bucólico, meio lânguido ele continuava, mecanicamente, a arremessar pedaços de pão às aves, indiferente a tudo, inclusive à tempestade que ameaçava. A cidade movimentava-se às pressas tanto pelo frenesi urbano de fim de expediente, como pela pressa em desfrutar o aconchego do lar e livrar-se de uma tormenta em trânsito. As artérias da cidade estava em alvoroço, mas ele continuava no aconchego da própria solidão, do marasmo íntimo que o consumia.
Um leve toque no ombro o despertou. Súbito ele ajeitou-se no banco rígido e frio a procura de quem violara sua imersão íntima e necessária.
- Atrapalho? Era uma voz de mulher.
- Oh,
não! Ajeitou-se complacente. Estava a observar como eles se jogam em busca de
uma simples migalha de pão. Nem sempre
fazemos isso quando queremos algo.
- Não é
de admirar, rebateu a voz em tom amigável, se considerarmos que as migalhas são sinônimos de sobrevivência.
- Tens
razão, concordou ainda com olhar desatento, é isso que devemos temer.
- Isso o
que?
- A sobrevivência,
respondeu ele, encarando-a.
Ela sorriu levemente, arqueou involuntariamente a sobrancelha
e, por fim, acomodou-se no assento gélido.
- Uh! Gracejou
sob o sorriso que conseguira arrancar dele. Está gelada essa pedra.
- Acomode-se
e logo se acostuma.
Ela
arrancou um lasca do pão posto sobre o assento e o imitou na ação de alimentar as aves que aguardavam ansiosas cada
arremesso.
- Por que diz que deveríamos temer a sobrevivência?
- Ora,
porque não somos esses pombos.
- Eles lutam por cada migalha, você mesmo
disse isso. Acha que sobreviver é assim tão fútil?
- Se
estivermos nos referindo aos pombos, nem tanto. São seres medíocres que nada mais fazem além de disputar uma migalha qualquer
para não sucumbir à fome, a necessidade de comer e comer.
- E não é assim que deve ser?
O sorriso novamente visitou os lábios ressequidos pelo vento que trazia mais e mais nuvens escuras e pesadas.
- Sim, é assim que deve ser para aqueles que contentam-se em sobreviver a cada raiar do sol. Ser humano deveria ser diferente de ser um pombo ou uma formiga.
- Crer
que a existência de um humano seja mais
relevante que a de um outro animal qualquer?
- Creio
que temos mais motivos para acreditar que somos a mesma natureza, mas não devemos nos contentar com motivos
existenciais semelhantes.
- Por
óbvio que não.
- Que
razão teríamos para louvar a nossa existência se dominamos o raciocínio e não
conseguimos ser diferentes dessas pobres aves que sobrevivem por instinto? E
talvez melhor que nós, os prodígios pensadores. Chega a ser ironia.
- Um bom
começo seria valorizarmos aquilo que
temos e dispomos.
- Seria
conformismo, rebateu ele sem desviar o olhar das aves aos seus pés. Conformismo é uma prática inerente aos
tolos. Essas aves, continuou ele, vivem desprovidas de qualquer viés
existencial.
- Por
Deus! E que mal há nisso?
- O mal
está nos fatos e atos que levam o homem
a agir da mesma forma que os irracionais.
-
Talvez, diferente do que afirmara antes, não somos tão especiais assim, tão
diferentes deles pelo fato de determos o raciocínio.
- Tenho consciência de que somos pequenos,
admitiu ele, mas não me apraz a ideia de ser apenas mais um sobrevivente.
- E o que estaria faltando para a sua plena existência enquanto ser humano que é? Indagou ela engajada em juntar os pertences, ao sentir as primeiras gotas de chuva saudar o chão.
- E o que estaria faltando para a sua plena existência enquanto ser humano que é? Indagou ela engajada em juntar os pertences, ao sentir as primeiras gotas de chuva saudar o chão.
Disfarçando o embaraço ele olhou o tempo e a encarou. Sorridente, ela apressou em despedir-se com singela cordialidade e foi-se sem esperar uma resposta, fosse qual fosse. Idem os pombos. Agora, novamente sozinho, ele a acompanhou com o olhar. Já do outro lado da rua, ela ainda se voltou, acenou e foi-se de vez.
- Talvez me falte ser feliz e essa felicidade pode estar presa n’algum inconsciente que se aproxima e tudo que consegue enxergar são as migalhas que arremesso aos pombos.
Foi tudo que ele disse antes entrar no automóvel já sob o ataque intenso de grossas gotas de chuva.
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