quinta-feira, 13 de março de 2014

Fragmentos de uma vida… (FINAL – ou seria o começo?)

>> Fragmentos de uma vida… – 26Jan2014
>>> Fragmentos de uma vida… (II) – 10Fev2014
>>>> Fragmentos de uma vida… (III) – 22Fev2014
>>>>> Fragmentos de uma vida… (IV) – 03Mar2014

Naquela edição, o maior e mais importante certame de beleza da terra recrutara suas aspirantes, exatamente no meio do ano. Como praxe, as delegações mostravam-se frenéticas; a perseguição às candidatas era constante, por parte dos fotógrafos, curiosos, e principalmente, pelos inúmeros fãs que puderam embarcar à cidade sede do evento.

A rotina árdua, típica daquele tipo de evento, progredia de maneira intensa. Contratempos, descompassos, dissabores e decepções formavam apenas algumas das tantas nuances adstritas a todas às jovens embaixadoras. Todavia, mesmo diante de tantas incertezas, elas mantinham ou tentavam manter um aspecto de felicidade e contentamento constantes. Era parte do jogo. Ali, não poderia haver qualquer resquício de margem para erros. A condução individual de cada candidata poderia significar, tanto a vitória quanto a derrota. Esta – temida e tão certa de vir o quanto é a certeza que somente uma será contemplada com o prêmio máximo; aquela – perseguida a todo custo.

Os dias para alguns foram lampejo, para outros a personificação da morosidade. O espetáculo de luzes, cores, apresentações artísticas e gritos eufóricos de uma plateia extasiada transcorreu de forma memorável. Ao final daquela noite de um conto surreal, a nova soberana fora recebida sob um coro de aplausos ensurdecedores.

Naquela noite uma jovem entrara para a história e junto ao seu nome, tatuara, para sempre, o do seu idolatrado País.

*** ***
Ela veio compassadamente, andando ora a ladear as alamedas da praça, ora pelo centro, onde se vislumbrava mais o aspecto de jardim devido a presença de muitas plantas ornamentais. A Praça Central estava especialmente bela. Os cuidados a ela dispensados pela administração da cidade eram notórios. Ao ar, apesar da robustez do centro da cidade, rescendiam leves aromas, os quais atraiam insetos e estes, pássaros. Fazer referência aos pombos tornar-se-ia em redundância; eles sempre marcavam presença, embora dispersos ou não tão coesos o quanto antes.

Alguns anos passaram-se desde a última vez que ali estivera. A cidade parecia rejuvenescer a cada dia, e para ela era demasiado o orgulho por constata-la tão bem cuidada. Essa máxima também poderia ser aplicada à parte periférica, claro, nas devidas proporções. Era a sua terra natal.

A presença daquela jovem e bela mulher jamais passara despercebida onde quer que fosse, mormente após os últimos feitos. Solitária naquela tarde, após deixar o táxi nos extremos da praça, momentos antes, olhares curiosos a procuravam involuntariamente. Vez ou outra um leve cumprimento gestual, um sorriso tímido de um transeunte, uma observação segredosa em referência à jovem que procurava não externar o contentamento por ser reconhecida por seus citadinos.

De cabelos presos e óculos escuros repousando à fronte da cabeça, personificava a encarnação da elegância despojada, especialmente por trajar vestes convencionais sob estampas que remetiam ao clima dos trópicos. Colorida e simples, ela avançou até o velho banco da praça; lá sentou e esperou.

Oh, o velho banco! Ela o avaliou nos mínimos detalhes. Coberto com tinta cinza-opaca, o velho assento ganhara nova roupagem. Agora, mantinha o aspecto de novo, como todos os demais. Os pombos, apesar da hora vespertina, não faziam algazarra a espera de iguarias para saciar a fome. Tudo levava a crer que a parceria homem x ave perdera a constância.

Entre um cumprimento e outro, repentinamente um sorriso iluminou o rosto da jovem. A espera chegara ao fim. Os ânimos aquiesceram sob um abraço longo, cingido, que por instantes fizera o tempo parar. Palavras não foram ditas; tornaram-se insignificantes, subjugadas pelo atodo sentir”.

- Como você está? Ele quis saber ainda envoltos em abraço mutuo.
- Estou bem. Ela suspirou.

Já acomodados, ambos buscavam algo que, por razões imperceptíveis, parecia perdido. E, dentre todas as análises repentinas e involuntárias, nenhuma alcançou qualquer grau de reprovação.

- Por que aqui? Questionou ele olhando em volta. – Por que aqui, após tantos anos?
- Foi aqui que nos conhecemos. Tinha que ser aqui. Ela sorriu. – Foi difícil, senti a sua falta… todos os dias.
- Eu também. Ele completou.
- Então, por que fizemos isso? Por que você fez isso. Ela quis saber.
- Porque foi necessário.
- Talvez tenha razão, mas, sumir sem deixar rastros, não me pareceu uma atitude das mais sensatas. Principalmente, se vivemos em um tempo onde as distâncias cada dia mais se apequenam.
- Não se tratava de condições de deslocamento e sim, da necessidade de reconhecer as nossas prioridades. Depois, eu estava perdido, mas você perder-se de mim era impossível. Acompanhei cada passo, à distância, mas eu estive lá o tempo todo.
- Nós éramos a prioridade… Ela o interrompeu. – Deveríamos ter caminhado juntos.
- Não sejamos tão egoístas, minha querida. Há vida e propósitos além do sentimento da paixão. E nós sabemos disso. Aprendemos essa máxima juntos. Quanto mais a conhecia, mais tinha certeza da concretude dos seus sonhos. Via isso no seu olhar, nas suas ações, na sua luta por aprender, aperfeiçoar, compartilhar. Desde o primeiro momento eu soube que não seria fácil; que eu estava a aventurar-me em ambiente relativamente perigoso. E que em algum momento, por uma motivo ou outro, teria que abdicar de você. E me preparei para isso, todos os dias. Acredita que foi fácil me desfazer de tudo que um dia nos ligou, ainda que esse tudo fosse apenas material? Por tudo o que vivemos não tinha o direito, aliás, ninguém tem, de sequer cogitar que desistisse dos seus intentos.

Ele a encarou. Dos olhos marejavam lágrimas. Já ela, não as conteve e ao contrair os olhos irromperam-nas fugazes.

- Por favor, me desculpe… quanto egoísmo de minha parte! Proferira no momento em que ele, delicadamente, tocou-lhe a face úmida com o dorso da mão.
- Ora, por favor! Estamos aqui, hoje. Falemos então da sua vida de soberana. Do seu tempo e contratempos, dos encontros e desencontros. Ele buscou impor leveza a conversa. – Diga-me: viveu de fato aquilo que almejou com a devida intensidade.

Ela sorriu ao consentir. Novamente o rosto reluziu.

- Foi um conto de fadas, mas um conto onde a fada trabalha duro e realmente precisa manter os pés no chão.
- Teria conseguido manter os pés no chão consciente de que eu estava ali do lado? Acenando à você? Desconcentrando-a?
- Convencido… presunçoso! Ela o empurrou levemente.

Ele a encarou sério.

- Teria conseguido? Teria tido o foco necessário pra cumprir todos os contratos que se comprometeu a cumprir se algo ou alguém quebrasse aquele foco?
- Que importância tem isso agora?
- Teria? Ele insistiu.
Ela desviou o olhar ao responder.
- Não
- Todos somos suscetíveis a isso. Somos apenas humanos, lembra? Ou elegemos prioridades ou estaremos condenados a abandonar projetos pela metade… quando tentamos abraçar o mundo acabamos por não abraçar ninguém por completo.
- Isso também fez-me manter o foco. Mas, não queria ficar sozinha, convenhamos.
- E nunca esteve. Em determinados momentos, a companhia mais adequada se resume a nós mesmos, em outros, a nossa família. As variantes nem sempre tem final feliz.

- E você? Ela quis saber. – Mamãe sempre me falou de você, mas, após a sua mudança em definitivo pra capital, nem à ela deu satisfação.
- Imagina se eu estivesse em contato constante com sua família… seria eu a fraquejar. Eu seria um péssimo estrategista e por tabela, meu plano cairia por terra.

Ele parou um breve instante e sorriu.

- Eu casei. Ele admitiu.

Ela estremeceu.

- Você o quê?

Ele agora riu, de fato.

- Dá para crer nisso? Eu casei.

Incômoda ela hesitou um pouco. Respirou fundo e retomou a postura, tentando disfarçar o indisfarçável.

- E filhos? Já tiveram filhos?
- Não. Ele respondeu de pronto sem tirar o sorriso do semblante.
- E ela?
- O que tem ela?
- Ela é bonita?
- Mais do que você? Acredita que haja alguma mulher mais bela que você?
- Não seja hipócrita. Ela o rebateu séria.
- Você também teve seus amores.
- Namorados, você quis dizer.
- Sim… namorados, amantes, companheiros…
- Sim, tive… mas agora não tenho. E então, ela é bonita? Insistiu.
- Sim, ela era bonita.
- “Era”? Oh, meu Deus… me desculpe! Ela é falecida?
- Não… Ele riu solto. – Nos separamos… há exatos dezessete dias e, agora, algumas horas.
- Seu idiota… esbravejou ela, voltando a sentir o pulsar de todo o corpo novamente. Idiota, idiota… você é um tremendo de um idiota.

Involuntariamente, a reação dela provocou nele incontidas gargalhadas, que por sua vez aguçou a atenção de quem por ali passava.

A partir daquele instante, não demorou muito e ela fora, finalmente, reconhecida pelos transeuntes e, de boca em boca, todos ficaram cientes de que a maior personalidade daquela cidade interiorana - agora também personalidade do mundo - esbravejava na Praça Central, envolta em graciosa sutileza.

Ele, em atitude arteira e consciente do momento, afastou-se e deixou que o curso dos acontecimentos fluíssem. Novamente, constatava a nobreza na figura da bela mulher que um dia cruzara o seu caminho. A cada gesto de atenção para com as pessoas - jovens, crianças e adultos que buscavam tocá-la, guardar uma fotografia na memória – passava uma autenticidade incomensurável. Perseverou muito também para esses momentos. Como ela poderia sair de tão recente estresse e adentrar a um ambiente naturalmente terno para com os admiradores? Ali, sua certeza fora ratificada – estava diante de um ser humano nobre, de uma mulher completa, realizada, segura… estava diante da mulher da sua vida.

Em um dado momento os olhares se cruzaram. Ele acenou e sorriu. Ela retribuiu, consciente de que uma nova etapa, uma nova prioridade emergia em sua vida. A tietagem prolongaria por horas, mas, ela dera por encerrada em dado momento e adentrou, agora, o automóvel de onde ele a aguardava.

- Nossa… nunca imaginei que na realidade fosse assim! Ele observou.
- É a minha terra… Deus me livra se fosse diferente. Ela gracejou.

Após leve arrancada, o carro parou por apelo dela.

- O que foi? Ele quis saber.
- O banco… Ela apontou o assento. – O banco do homem-dos-pombos.

Ele riu.

- É… infelizmente, parece que o homem não pode mais agradá-los com migalhas.
- Dizem que ele mudou pra capital. É homem de sucesso nos negócios. Ela o encarou sorridente.
- Talvez ele tenha estipulado novas prioridades… sempre as prioridades…
- Lembra-se de quando nos conhecemos ali?
- Claro…
- Eu perguntei o que faltava para completar a sua existência plena
- É… eu sei.
- Ficou me devendo uma resposta. Qual seria sua resposta?
- Qual seria, não. Qual foi a minha resposta… Ele enfatizou.
- Respondeu? Intrigou-se ela ao tempo que acionava a luz interna em razão da proximidade da penumbra noturna. O rosto dele se iluminou.
- Sim, eu respondi, mas você já havia sumido, correndo da tempestade. Ele sorriu e apoiou-se ao volante do automóvel ainda com o motor ligado.
- E o que respondeu?
- Com as mesmas palavras eu não lembro. Faz tanto tempo. Por que isso agora?
- Não sei… andamos por caminhos tão distintos nos últimos anos. E com outras palavras… seria capaz de reproduzir sua resposta? Ela insistiu.

Ele contemplou o crepúsculo ao longo da avenida… lá no horizonte.

- Acho que disse…
- Você acha? Ela o interrompeu graciosa.
- Está bem… eu disse que faltava ser feliz e que a felicidade estava escondida em alguma garota que passava ali e só via as migalhas e os pombos que as devoravam, engoliam… algo do tipo.

Ela acomodou-se melhor e arqueou-lhe o rosto.

- Não parou pra pensar, mesmo naquele dia, ou agora, que a tal garota nunca vira migalhas ou pombos?
- Não… naquele momento, não. Bom… agora os pombos foram embora… as migalhas se desfizeram. E o banco... como podemos perceber, o banco ficou vazio.
- O banco ficou vazio – ela completou – porque o tal homem, finalmente, deve ter encontrado a felicidade.

Um irresistível e caloroso beijo selou o momento, não sem ser percebido por alguns curiosos que ainda acompanhavam com o olhar a figura da célebre cidadã. Alguns gritos, assovios e palmas cortaram o ar. Acenos se perderam na medida em que o automóvel rompeu em movimento e misturou-se aos demais no trânsito à boca da noite.

Começava um novo ciclo.

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